“Tenho medo de cometer erros com a minha filha. Medo de que ela carregue experiências que vai precisar curar depois. O que eu posso fazer?”
Um dia, participando de uma aula durante uma das minhas formações em autoconhecimento, uma colega fez essa pergunta.
Para explicar o contexto, é importante dizer (e talvez você já tenha notado pelos textos que escrevo aqui) que o processo de mergulho em si quase sempre envolve revisitar experiências da infância.
Isso porque é nessa fase que construímos nossas primeiras referências sobre quem somos, como funciona o mundo e como nos relacionamos com ele. É ali que formamos as bases das nossas crenças, medos, inseguranças e padrões emocionais, muitos dos quais seguimos repetindo, sem nem perceber, na vida adulta
.Diante do questionamento, a resposta da professora me trouxe um insight profundo. Ela disse:
"Isso é inevitável. Por melhor que a infância tenha sido, sempre haverá algo a ser ressignificado. A chave é saber que sua filha, assim como todos nós, terá dentro de si todas as ferramentas para fazer esse trabalho. É uma questão de confiar."
Mas por que sempre haverá algo a ser ressignificado?
Porque somos humanos. E o nosso principal propósito ao vir ao mundo é crescer e evoluir. Se não passássemos por experiências difíceis, não teríamos impulso para isso. Afinal, alguém sairia da sombra e água fresca se não houvesse um incômodo que o movesse? Acho que não, né?
E mais: sempre haverá algo a ser ressignificado porque somos imperfeitos. E toda criança, com sua visão limitada do mundo, interpreta as situações de forma dual: ou isso, ou aquilo.
Ela acredita que ou é amada, ou não é. Ou é boa, ou ruim. Que ou recebe atenção, ou é ignorada. Ou pertence, ou é rejeitada.
Na ausência de um meio-termo, situações que para um adulto seriam entendidas como algo natural da vida, para uma criança podem ser vividas como rejeição, abandono ou desamor.
Pense em você mesmo: você ama alguém, mas pode se sentir magoado e triste em alguns momentos. Você dá atenção e presença aos que estão próximos, mas às vezes também precisa de espaço. A vida adulta é 50/50. Um pouco disso, um pouco daquilo, e isso contraria a percepção infantil.
É por isso que, muitas vezes, podemos ter nos sentido rejeitados ou abandonados na infância. Não necessariamente porque de fato aconteceu, mas porque foi assim que a nossa criança se sentiu e interpretou a situação.
Ela não está errada nem certa. O adulto também não.
São apenas visões diferentes, decorrentes de níveis distintos de maturidade e compreensão.
Quando amadurecemos e percebemos que estamos presos em padrões de autossabotagem, medo, dependência, insegurança ou excesso de controle, o caminho de volta quase sempre passa por olhar para aquela versão pequena de nós mesmos. Não para julgar, mas para compreender a experiência que ela viveu e dialogar com essa parte que ainda não conseguia ver a situação completa. É aí que estão as respostas.
O autoconhecimento é aceitar, acolher sua versão criança e explicar o mundo para ela.
Claro que também sei que há pessoas que passaram por experiências muito negativas e até abusivas. Esses são os chamados Traumas com "T" maiúsculo. E por mais profundas que sejam essas feridas, o autoconhecimento continua sendo o processo de voltar até essa criança que sofreu e mostrar a ela que, agora, você está ali. Que você cresceu. Que pode protegê-la. Que ela não está mais sozinha.
Só nós podemos fazer isso. Quantas vezes for preciso.
Nesse ponto, é preciso ter cuidado para não cair em um mal-entendido. Quando começamos a olhar para dentro, corremos o risco de cair na armadilha de acreditar que somos apenas vítimas.
Vejo com frequência pessoas culpando os pais, presas na mágoa e no ressentimento. Dizendo ao mundo que foram feridas e, por isso, não conseguem mudar nada. Ficam paradas, congeladas na dor.
Mas aqui vai algo importante:
Nossa criança, sim, estava emocionalmente vulnerável e, em algumas situações, pode até ter sido vítima. Já o nosso adulto tem a capacidade de olhar o todo com mais consciência, e decidir o que fazer a partir disso.Seguir carregando nossas dores ou escolher transformá-las em caminho está em nossas mãos.
Não digo isso com frieza. Não quero parecer insensível. Sei que dói. E sei também que se prender à dor pode ser um estágio do processo, uma forma de se proteger. Só lhe peço que leia com o coração aberto, com disposição para ver o que existe muito além desse lugar. E se não fizer sentido pra você agora, tudo bem. Guarde esse texto para quando (ou se) fizer.
Assumir o compromisso de olhar para dentro é se libertar do peso de carregar experiências passadas para sempre. É começar a escrever uma nova história, como o adulto que você é, honrando a sua trajetória sem apagá-la, mas ressignificando o lugar que ela ocupa.
É reconhecer que você tem o poder de escolher.
Você está disposto a trilhar esse caminho de descoberta de si?
Espero que esse texto lhe motive a dar um passo nessa direção, por menor que seja. Lhe envio um abraço cheio de carinho, mesmo se a gente ainda não tiver se conhecido pessoalmente. Se quiser conversar comigo sobre esse percurso, me manda uma mensagem.
Um beijo,
Sílvia.